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Alma de um VagaMundo

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Recortes de uma Moleskine V 



Conto de Natal

A camioneta pára na pequena paragem azul daquela que já foi a minha terra. Saio lentamente carregando a mochila vermelha que já foi tua... mas que hoje é minha. Um frio de rachar saúda o meu regresso. Tinha saudades de ouvir o latir dos cães ao longe, ao cair da noite, de me perder na infinidade do verde que rodeia a minha aldeia. Tinha saudades de sentir o cheiro no ar da madeira a crepitar, de imaginar as pequenas lareiras acesas, o conforto do lar de quem à sua volta se senta. Tinha saudades deste cheiro a Natal que aqui conheci e que aqui deixei quando parti. Tinha saudades de caminhar por este mesmo carreiro enlameado, como sempre o recordei, em direcção aquela casa que já foi nossa. Tenho saudades do teu sorrir, do teu olhar colado em mim. Tenho saudades de ti... de ti que não voltas, por mais que espere.

Pego no delgado cantil de metal que me ias oferecer no meu ultimo Natal. Dou uma golada. É amargo o whisky, assim como são amargos todos os dias depois de ti. Escurece rapidamente. Nada que afecte quem já vive na escuridão. Ao longe as luzes das casas parecem pequenas lamparinas a dançar ao vento. O vento sopra baixinho e a névoa do ribeiro começa lentamente a invadir o carreiro. Lembras-te do quanto dançamos naquela véspera de Natal? Eu sei que não me podes responder. Se pudesses dirias que sim, mas que já foi há dois anos, que devia esquecer, erguer a cabeça e viver a minha vida. Como se houvesse vida sem ti. Discutiríamos sobre isso uma noite inteira, com um vinho e uma vela como companhia. Faríamos amor quando se nos acabassem os argumentos. Sempre concluímos que não conseguiríamos viver um sem o outro, lembras-te? Eu sou a prova viva disso. Incoerente este meu pensamento, bem sei. Nada faz sentido desde que aquele bêbado nos matou aos três, escondido por detrás de um volante, camuflado pelo álcool de uma qualquer paródia com os amigos. “Chama-lhe Dora, meu amor”. Foram as tuas últimas palavras. E despediste-te de mim com um sorriso. Os médicos não a conseguiram salvar, meu amor. Eu não consegui salvar nenhum de nós.

Está realmente frio. Tento aquecer as entranhas com mais uma golada. Inútil! É inútil tentar aquecer o corpo de uma alma gelada. Mas finalmente estou a chegar a casa. Continua de um branco cegante, como a recordava, e as sebes que a rodeiam permanecem primorosamente cortadas. Abro o pequeno portão verde do jardim. O seu rangido faz-se ouvir no silêncio da noite. Um cão começa a uivar no preciso momento em que sinto o primeiro floco de gelo bater-me na cara. Começou a nevar. Em breve tudo ficará coberto de um manto branco. Perfeito! Avanço em direcção à porta. Uso o batente para me anunciar. A porta abre-se. Estou prestes a regressar ao meu lar. Sou recebido pelo sorriso de uma criança. Podia ser a nossa Dora. Abro a mochila e retiro de lá o Ted, o branquinho urso da tua infância. Entrego-lho e fico imóvel no alpendre. Escuto a voz de um adulto que pergunta “Quem é?”, enquanto caminha para a porta. A criança vai para dentro agarrada ao seu novo amigo.
“Boa noite. O que fazes aqui?” – pergunta-me ele. Respondo-lhe com o premir do gatilho da caçadeira, que trazia por debaixo da gabardina. O seu corpo cai oco no chão. Quebra-se novamente o silêncio com mais um disparo... junto-me a ti.

A. Narciso @ quinta-feira, dezembro 15, 2005

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