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Alma de um VagaMundo

quarta-feira, outubro 12, 2005

Recortes de uma Moleskine IV 



A espera num trago de rum

Acomodo-me com dificuldade dentro do meu velho corta-vento cinza. Devia ter seguido o conselho da turca louca da lavandaria, em vez de me ter metido a lavá-lo naquela caixa metálica a que o colombiano Jimenez chama de máquina de lavar roupa. Bem, tarde piei...

Assim desço as negras escadas de ferro daquela ruína vermelha, a que chamo de casa, saindo na OstseeStrasse. Na rua, a noite de Agosto traz à memória os dias frios do Inverno do Ártico. É assim Hamburgo, uma cidade onde o verão é uma qualquer tarde de Junho. Na esquina com a Reeperbahn, um qualquer bêbado sem-abrigo é espancado por dois neo-nazis em igual estado. Do outro lado da estrada três africanas vestidas com longas gabardines tentam, em vão, vender aquilo que têm, aos escassos transeuntes de Saint Pauli. É uma actividade pouco lucrativa numa noite assim... uma pessoa com o mínimo de juízo fica em casa a ver televisão e a tragar uma qualquer bebida manhosa comprada ao desbarato aos contrabandistas do Elba. Mas eu preciso de andar, de apanhar ar, ou melhor de apanhar ventania. Faz-me bem para colocar as ideias no lugar. Sempre fui assim. Se tenho os pensamentos em intempérie não consigo estar num lugar acolhedor como o é o lar. Preciso de harmonia percebem? Nem eu...

E é com este pensamento a vaguear pela mente que avanço rumo ao porto. Gosto de caminhar por lá nas horas mais tardias. À noite não se vê turistas, casais apaixonados ou mirones depravados. Sobretudo numa noite invernal de Agosto.

Páro junto à torre portuária. Os barcos não param de chegar e partir. Uns trazem sonhos, outros levam-nos com eles. Hamburgo também é assim, um entreposto de sonhos. Sinto o frio cortar-me a face enquanto miro a escuridão, recortada pela luz dos barcos no Elba.

Três indivíduos latinos cortam o silêncio seguramente animados pela bebida. Caminham abraçados e soltam gargalhadas estridentes em resposta às frases que aleatoriamente cada um deles solta. Seguem em direcção ao mal afamado bar Tierra del Fuego, do qual o meu velho amigo Pablo é proprietário. Pablo é um daqueles argentinos loucos lá das bandas da Patagónia, danado por rum, mulheres e um tango bem tocado. É um bom homem, com quem se pode beber um copo, rir e chorar... sim, porque os homens também choram, sobretudo aqueles que vêm de lugares inóspitos, como o é a Patagónia.

As memórias das nossas longas conversas levam-me a seguir a pandilha latina até à rude porta de carvalho do Tierra del Fuego. Como sempre um tango faz-se ouvir. No interior um bando de marinheiros aquece a alma com rum, enquanto as meninas de Hamburgo lhes tentam aquecer o corpo, aliviando-os para tal do excesso de peso das suas carteiras.

Dirijo-me ao bar, peço um rum e pergunto por Pablo.
- O señor Pablo não se encontra. Está de férias em Sylt com a familia. Só regressa em Setembro – responde-me Juanito, o taberneiro mais papável da cidade Hanseática.
Bebo o rum de um trago só e respondo-lhe que não faz mal, que apenas queria dar-lhe um abraço. Peço outro. Isto do rum é viciante. Melhor que o frio como terapia para o coração.

Na pequena pista do Fuego um jovem casal inicia o ritual de dança do novo tango que agora toca. Gotan Project, julgo eu. Embalados pelo subir da música, os seus corpos confundem-se sob a luz fosca do bar. Ela sorri, com um brilho no olhar que faz lembrar o luar de Agosto no meu país. Os lábios dele roçam no seu pescoço enquanto a segura em seus braços. As pernas entrelaçam-se, os passos aceleram. A harmonia dos amantes fascina-me. Também já fui assim, invisível nos teus braços, num qualquer palco deste mundo.

Peço mais um rum. Estamos em sintonia. Ele escorrega para o copo quase à mesma velocidade com que escorrega pela minha garganta. Gosto. Peço outro para acompanhar um cigarro. Qualquer desculpa é uma boa desculpa para mais um copo.

Os marinheiros estão cada vez mais animados, as mulheres mais oferecidas, o casal em maior harmonia e eu cada vez mais perto de ti.
O rum e o fumo trazem até mim a nossa realidade. Eu sei, eu sei, hoje é Agosto e é Inverno em Hamburgo. Mas eu aguardo assim pelo amanhã, por Setembro, pelo chegar da minha Primavera.

A. Narciso @ quarta-feira, outubro 12, 2005

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