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Alma de um VagaMundo

quarta-feira, agosto 11, 2004

Lá Fora 

Uma sala vazia com um olhar sobre o Tejo. Um quarto rasgado pela luz, que irrompe pela negra cortina. Uma cama, uma vela a arder, uma garrafa de wiskey aberta. Apenas mais uma noite como tantas outras, numa cidade que podia ser em qualquer ponto do mundo. Um monte de betão nos arredores de uma capital. Casas decrépitas, habitadas por almas penadas que acordam, vivem e dormem. Não sentem para além dos prazeres carnais do dia a dia. Da cerveja fresquinha tomada no café, do cigarro da manhã, do sexo rápido e frio em cima da secretária, no vão da escada, no corredor, na cama rasgada. Pedro Dantas já foi diferente. Hoje ao rodar a chave que abre a porta do seu apartamento sabe que não passa de mais uma alma que devaneia por esta cidade, onde a indiferença reina, onde o limite para o mal se encontra na imaginação de cada um.

Atira o seu casaco para cima da cadeira da cozinha. Olha para a sala vazia. Encontra o copo. Seu companheiro nocturno das insónias. Hoje veio sozinho. Hoje será só dele. Despe-se atirando com a roupa para um canto qualquer. O whiskey, ao contrário das suas companhias, não é rigoroso com a apresentação. Bebe um gole. Segue-se outro. A música daquele rádio infernal do vizinho de cima não para de tocar. Já há noites que deseja subir ao quinto andar e pura e simplesmente dar um tiro à criatura. Acha justo. Bebe mais um copo. Afinal o primeiro não é mais do que um “olá” às insónias que o atormentam. “Eu mato-te cabrão”, grita. A música continua a subir, a lua continua a espreitar para a sala vazia, onde ele se encontra sentado no chão. O mundo ignora-o. Um carro pára na estrada, por debaixo de sua janela. Duas pessoas falam. Um homem e uma mulher. A porta do carro abre. Gritam. A mulher parece estar chateada. Volta a pegar na garrafa. Verte no copo mais uma dose. Voltou a esquecer-se de fazer gelo. E como lhe faz falta com este calor. Repete que hoje o fará. Provavelmente irá adormecer sem o fazer, agarrado a uma garrafa vazia, com uma música detestável a tocar e os seus demónios, alucinados pelo álcool, a dançarem na sua mente.

As vozes na rua continuam a subir. Não consegue perceber o que dizem, mas gostava. É tão mais fácil viver a vida dos outros. Pensa em levantar-se e ir até à janela. Em vez disso bebe mais um gole e deixa-se escorregar pela branca parede até estar completamente deitado no frio chão de mármore.

A música finalmente pára. Já não terá de ir lá acima matar a criatura. “Ainda bem”, pensa. Até porque já não tem balas para a caçadeira que era do seu pai. Talvez já nem funcione. As vozes na rua estão a cada instante mais agitadas. Um grito de mulher é abafado por uma porrada oca. Os pneus chiam, o carro arranca. Silêncio. Cabeça à roda. Garrafa vazia. Final de mais uma noite de verão nos arredores de Lisboa...

A. Narciso @ quarta-feira, agosto 11, 2004

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2004 by Alexandre Narciso

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