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Alma de um VagaMundo

quarta-feira, agosto 18, 2004

Lá Fora II 



Cenas do último capítulo

O sol matutino, reflectido no Tejo, irrompe pela enorme janela da sala com um brilho cegante. Esqueceu-se mais uma vez de fechar os estores. Acorda, esfregando a testa com as costas da mão direita. Dor de cabeça intensa. É como se os sinos de uma igreja tocassem em seu cérebro. Era quase sempre assim o seu despertar. Como detesta as manhãs soalheiras. Como detesta acordar completamente nu, caído no chão daquela sala. Nem mesmo quando dorme acompanhado lhe agrada dormir despido. Sempre, apesar das queixas das suas companheiras, urge em vestir algo após as longas sessões de sexo. Às vezes são curtas. Depende muito do álcool, da disposição. De pouco lhe importa. Já há muito que o sexo passou a ser apenas mais um ritual da noite. Nada menos, nem nada mais do que isso.

Dirige-se até à casa de banho. São oito horas. O tempo não perdoa e tem uma reunião às dez no escritório. Os homens ligados à logística são absurdamente pontuais. Ainda mais quando são alemães. Toma um duche frio, faz a barba. Apesar de os tentar evitar, os pensamentos invadem-lhe a mente. Gostam de acordar bem antes dele. Talvez nem cheguem a dormir. Apenas repousam embalados pelo álcool. Bolas, como detesta a rotina matutina. Veste o negro fato de seda, ajeita a sua gravata grená, penteia-se atenciosamente, coloca a sua essência de perfume, pega na sua pasta e sai pela porta fora.

Quem o veja pela manhã não vê um homem decadente, mas sim um homem altivo. Apesar da ressaca e da noite mal dormida, Dantas é um homem bem parecido com uma apresentação cuidada. Tem um charme muito peculiar, fruto dos seus 36 anos bem vividos, do seu corpo elegante e dos seus cabelos negros pincelados aqui e além por finas madeixas brancas.

O elevador demora a chegar. É sempre assim e sempre o aborrece. Desvantagens de se morar no 21º andar numa torre de 29. Aproveitando a lenta descida até à cave, compõem-se ao espelho do compartimento. Pisca o olho em sinal de aprovação. Por instantes sente-se feliz, como era outrora. Sensação interrompida pela inesperada paragem no rés-do-chão.

A porta do elevador abre vagarosamente. No átrio do prédio, Firmino, o velho porteiro moçambicano, falava com uma esbelta mulher loira. Os dois formavam um par no mínimo caricato. Ele derrotado pela idade, com não mais do que um metro e sessenta, de carapinha e barba branca, trajando umas calças de ganga e uma camisa de flanela creme aos quadrados negros, como sua pele. Ela com o seu arrojado metro e oitenta, de cabelos loiros compridos e soltos, de volumosos seios e com um vestido de noite prateado que parecia tirado de um qualquer baile de Casino. O seu corpo indicava que não teria mais que uns 20 anos. Já a sua face, visivelmente agastada, dizia algo bem diferente. Reparou nas enormes olheiras negras e no rimel que lhe escorria pela branca bochecha. Tinha seguramente estado a chorar.

Pelo seu sotaque adivinhou-lhe a nacionalidade. «Romena certamente», pensou. A sua longa passagem pela Alemanha, o seu emprego como director de uma empresa, dedicada legalmente ao transporte marítimo de contentores tinham-lhe dado essas faculdades. Como ele costumava dizer: “Nas lides dos portos vê-se de tudo. Ratos, marujos e gordos capitães”. E era uma crua realidade. Muito do que se move nos portos, não pode figurar nos papéis de alfândega ou do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Dantas já há muito que perdera a imagem romantizada dos enormes cargueiros.

O “plim”, que anuncia a completa abertura da porta do elevador fez-se ouvir. Olharam-se os três nos olhos. Com uma voz seca Dantas perguntou: “Vão descer?”. Era famoso pelo seu mau feitio matinal. Firmino sabia disso.
- Não Dr. Dantas, vamos subir. Peço desculpa por ter chamado o elevador. Não supunha...
Dantas interrompeu-o, perimindo o botão para encerramento das portas enquanto exclamava:
- Se me dão licença...

Enquanto as portas se encarregavam de os separar olhou fixamente nos olhos da esbelta romena. O olhar foi retribuído. Os olhos verdes, cor de esmeralda deixaram-no fascinado. O seu maior vício sempre fora as mulheres. Alegra-o saber que ainda continua a ser. Esboça um sorriso. Sempre o fazia quando encontrava uma que o agradava particularmente. Sobretudo à noite Dantas era um homem muito sorridente...

A. Narciso @ quarta-feira, agosto 18, 2004

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